Como é que a CONFINTEA VII se tornou uma história de sucesso da sociedade civil

Autoria: Raffaela Kihrer
A CONFINTEA é uma daquelas experiências únicas para os profissionais de educação de adultos, sobre a qual os especialistas experientes contam anedotas em sessões de convívio. A conferência tem um caráter quase lendário, pois só acontece uma vez em cada 12 anos, portanto, é sempre emocionante quando se encontra pessoas que já estiveram numa CONFINTEA anterior. No entanto, a CONFINTEA não é apenas um mito: é uma conferência da UNESCO que reúne ministérios, a sociedade civil e outras partes interessadas relevantes no domínio da aprendizagem e da educação de adultos (AEA) para discutir e adotar novos marcos para a AEA em termos globais. Estes marcos têm o nome das cidades onde a CONFINTEA acontece: portanto, em junho de 2022, foi adotado o Marco de Ação de Marraquexe.
Este ano tive o privilégio e a honra especial de participar na CONFINTEA VII em nome da minha organização, a Associação Europeia para a Educação de Adultos. Apesar de já ter ouvido falar de rondas anteriores da CONFINTEA em conferências europeias e, portanto, de ter viajado até Marrocos com certas expectativas, fiquei muito surpreendida com a animada atmosfera internacional e com a emoção quando o Marco de Ação de Marraquexe foi adotado. Mas falarei disto mais tarde.
Qual é o espaço da sociedade civil no processo?
Algumas coisas preocuparam-me na CONFINTEA VII: por que é que os representantes da sociedade civil estavam sentados no fundo da sala e não foram colocados assentos reservados, como sucede com os representantes nacionais, para demostrar claramente quem está representado na sala? Por que é que não houve oportunidades para a sociedade civil fazer perguntas e apresentar novas perspetivas nas sessões plenárias? Por que é que nem todos os estados membros da UNESCO enviaram delegações nacionais à CONFINTEA VII, e o que isso nos pode dizer sobre a importância que dão à educação de adultos?
Durante as minhas muitas conversas com os participantes da CONFINTEA VII, aprendi que a CONFINTEA, diferentemente de outras conferências da UNESCO no domínio da educação, distingue-se particularmente pela participação ativa da sociedade civil, embora seja, em princípio, uma conferência ministerial. Um participante da CONFINTEA disse que isso poderia apontar para um vácuo nas estruturas educativas, onde, em muitos países, a sociedade civil assegura a AEA e também cria as próprias estruturas para compensar a falta de estruturas governativas a nível nacional e regional. Anheier et al. (2019) argumentam que esse papel da sociedade civil é cada vez mais criado intencionalmente, especialmente nos locais onde os serviços públicos, como a educação e a saúde, são “terceirizados” pela administração pública, com o objetivo de tornar os serviços mais económicos e confiáveis. Somos reduzidos a “recetores” de decisões. Em certo sentido, a sociedade civil não tem escolha a não ser trabalhar para garantir que um maior número possível de adultos tenha acesso à aprendizagem, que a aprendizagem seja inclusiva e que sejam disponibilizados espaços de aprendizagem seguros e diversos.
Somos confrontados com situações em que há uma inversão de responsabilidades: em vez de nós, enquanto sociedade civil, podermos responsabilizar os atores nacionais por não cumprirem as suas promessas, temos de responder por não termos feito o suficiente, por exemplo, para aumentar a participação na AEA ou para assegurar a profissionalização a profissionais de educação ou para disponibilizar oportunidades de aprendizagem online muito rapidamente, durante a pandemia da COVID-19. Escusado será dizer que este não é o papel que vemos para a sociedade civil na AEA. Estão os nossos espaços efetivamente a encolher, como tem sido apontado nos últimos anos por muitos atores, especialmente pelas próprias organizações da sociedade civil?
As evidências da investigação, por exemplo, por Anheier et al. (2019), sugerem que esta não é apenas uma impressão baseada na experiência que as organizações da sociedade civil podem ter em alguns países. Embora a sociedade civil se tenha tornado maior relativamente ao seu contributo para o PIB, na maioria dos países da OCDE, o seu espaço para agir e se tornar força motriz de “inovações sociais, resiliência, prestação de serviços e dar voz a diversos interesses e comunidades excluídas” (Anheier et al. 2019: 3) é cada vez mais limitado.
Num relatório baseado num extenso inquérito a organizações da sociedade civil europeias, em 2016, a Civil Society Europe e a CIVICUS observaram que esses espaços de encolhimento são sentidos através da falta ou do reconhecimento limitado da sociedade civil, da regressão de direitos devido a medidas de combate ao terrorismo, do declínio do apoio financeiro público à atividade da sociedade civil e da colocação em perigo das atividades de defesa pelo aumento dos condicionalismos ao financiamento e pela falta de mecanismos adequados de consulta. O Parlamento Europeu publicou um relatório sobre o encolhimento do espaço para a sociedade civil na Europa, em 2022, que confirma estas conclusões.
Apelamos a uma sociedade civil forte na AEA, representando os interesses das organizações, dos profissionais de educação e dos alunos da AEA. Queremos garantir que o Marco de Ação de Marraquexe não entre para a história como (mais uma) estratégia que, em última análise, apenas sejam palavras ocas - e talvez falhe nas suas próprias ambições -, mas como um marco que conduziu a mudanças fundamentais na AEA em termos globais. Além disso, no final da vida útil deste marco, em 12 anos, queremos ser capazes de dizer que trouxemos, em termos globais, mais adultos para a aprendizagem, que também fomos capazes de envolver mais grupos vulneráveis e que fizemos com que as suas vozes fossem ouvidas.
E para isso, queremos ter um lugar à mesa nos processos de tomada de decisão como algo de natural. Precisamos de apoio estrutural e financeiro para podermos atingir os nossos objetivos - que também estão descritos no Marco de Ação de Marraquexe - e, sobretudo, também precisamos da certeza de que estamos a ser levados a sério. Acreditamos que todos os parceiros são importantes para a construção de sistemas de AEA sustentáveis e fortes: isto requer atores estatais e autoridades públicas, a sociedade civil e outros atores, como os parceiros sociais, de forma equitativa. E não se trata apenas da AEA, mas também dos valores que representamos. Uma sociedade civil forte é uma condição central para uma democracia robusta.
Fotografia do Instituto para a Aprendizagem ao Longo da Vida da UNESCO no Flickr
Representação na CONFINTEA VII
Numa conversa com Sir Alan Tuckett, OBE, representante da delegação do Reino Unido na CONFINTEA VII e ex-presidente do ICAE, este enfatizou que os que estariam em melhor posição para mostrar a importância da AEA não foram convidados para a CONFINTEA VII: os aprendentes adultos. Esta reflexão foi partilhada por muitos outros participantes da CONFINTEA VII. Se estamos a debater um novo marco de ação, como deixar de fora os que são os principais stakeholders e beneficiários da AEA? Um maior envolvimento da sociedade civil na preparação da CONFINTEA VII - como verdadeiros parceiros no processo - poderia ter assegurado a inclusão dos aprendentes adultos. Nos últimos anos, isto também se tornou uma questão cada vez mais importante a nível europeu e organizações como a AONTAS, na Irlanda, com seu Fórum Nacional de Aprendentes FET, têm sido as primeiras a inovar ao integrar a voz de alunos na AEA.
No entanto, embora o número de organizações da sociedade civil presentes na CONFINTEA VII fosse limitado e as sessões plenárias não oferecessem possibilidade de intervenção, houve espaço para discussão nos workshops: e aqui os participantes discutiram bastante, comentaram as apresentações e, acima de tudo, aprenderam uns com os outros. No centro estava a perceção de que existem práticas e abordagens pedagógicas mesmo em partes remotas do mundo ou em “países em desenvolvimento” que podem apontar o caminho a seguir por todos nós. Para mim, este é possivelmente o ganho mais significativo da CONFINTEA VII. Este é o poder da sociedade civil a gerar espaços de discussão aberta, onde o consenso e o conflito possam coexistir, para criar inovação e uma comunidade para a partilha de ideias.
E a sociedade civil não ficou inativa e não esperou - possivelmente em vão - um convite para participar como parceira na CONFINTEA VII. Por um lado, o Conselho Internacional para a Educação de Adultos (ICAE) organizou um Dia da Sociedade Civil, um dia antes do início oficial da conferência, onde ocorreram intensos debates sobre como deveria ser o novo marco e como ter em consideração as necessidades da AEA de todas as regiões do mundo sem cair na armadilha do eurocentrismo. A sociedade civil também foi representada no Drafting Committee do Marco e Cecilia Palm, das Universidades Populares suecas da EAEA, foi nomeada relatora da CONFINTEA VII.
No período que antecedeu a CONFINTEA VII, houve discussões muito longas entre as organizações regionais da sociedade civil, incluindo a Associação Europeia para a Educação de Adultos, sobre como deveria ser o novo marco para integrar as visões de todas as regiões do mundo. Na CONFINTEA VII, finalmente encontrei representantes de organizações similares à EAEA de outras partes do mundo, como a Associação Ásia-Pacífico Sul para a Educação Básica e de Adultos (ASPBAE), a Associação Americana de Educação Contínua e de Adultos (AAACE) e o Conselho de Associação de Educação de Adultos da América Latina (CEAAL), que, anteriormente, eu só tinha visto em videoconferências. Reunirmo-nos como uma comunidade de AEA foi realmente enriquecedor para nós.
Vários participantes com experiência anterior na CONFINTEA disseram que sentiam falta do poder visionário da CONFINTEA V e da paixão da CONFINTEA VI. Talvez o facto de esta ter sido a minha primeira CONFINTEA tenha sido uma “vantagem” para mim e - apesar das minhas reflexões acima descritas - senti um clima muito positivo e de confiança entre os participantes, que não se deveu apenas ao excelente clima e à bela cidade onde a CONFINTEA VII foi realizada. Tive a impressão de que os que estavam presentes em Marraquexe estavam sinceramente interessados num marco voltado para o futuro e que havia mais a unir-nos do que a separar-nos.
Visita de estudo a um centro de educação de adultos em Marraquexe, Fotografia de Raffaela Kihrer
Ver o trabalho de meses e de anos convergir
E então o grande momento de que estávamos à espera finalmente aconteceu: como seria a versão final do Marco de Ação de Marraquexe? Muitos de nós fomos apanhados de surpresa quando o marco foi revelado, e de uma forma muito positiva. As nossas recomendações para a melhoria dos parágrafos dedicados ao financiamento e à participação na AEA foram incluídas na versão final, assim como a nossa recomendação urgente de se trazer os princípios norteadores dos anexos de volta ao texto principal. Esta versão foi apresentada, submetida a votação e - aprovada por unanimidade! Muitos dos presentes devem ter ficado muito agitados, porque houve aplausos e entusiasmo por toda a sala.
Lauri Tuomi, Vice-Presidente da EAEA e CEO da Fundação Finlandesa para a Aprendizagem ao Longo da Vida, refere: “A cooperação durante a conferência foi excelente. A troca de informações para a finalização do Marco de Ação de Marraquexe foi contínua tanto entre os colegas da EAEA quanto entre muitos delegados de diferentes países. Também fiquei muito feliz por ser membro da delegação finlandesa e, assim, ter um contacto direto com o Ministério da Educação e Cultura da Finlândia. Eu diria que a estreita cooperação e a troca de informações durante a conferência contribuíram para o sucesso. O Marco de Ação de Marraquexe agora é um excelente guia para os próximos 12 anos de AEA em todo o mundo.”
Achamos que o marco poderia ter sido ainda mais ambicioso? Sim, claro. Acreditamos que o marco, tal como está agora, é um sucesso para a sociedade civil? Sim definitivamente! Alcançámos o que tínhamos trabalhado há meses e até anos, para um marco que orienta o caminho para uma AEA mais forte em todo o mundo e que apela aos Estados-nação para que garantam melhores financiamento e estruturas de AEA. O Marco de Ação de Marraquexe tem em consideração o papel da sociedade civil na sua implementação: “Reconhecemos o valor das plataformas multissetoriais para apoiar a governança da AEA com todos os atores relevantes e chave, incluindo, em particular, ministérios, organizações da sociedade civil, a juventude, o setor privado, universidades e operadores de AEA.”
Uwe Gartenschlaeger, Presidente da EAEA e Diretor Adjunto da DVV International, afirma: “Temos a impressão de que a importância da AEA nos processos de transformação que estamos a enfrentar é reconhecida. Os desafios das mudanças climáticas, a crescente desigualdade, a transformação digital e o aumento da violência não podem ser enfrentados sem darmos maior atenção à AEA. Os jovens e os adultos precisam de ser capacitados para entenderem e ajudarem a criar a mudança.”
E o que acontece agora? Nós - enquanto sociedade civil – continuaremos o nosso trabalho com aprendentes e grupos vulneráveis, trabalharemos em conjunto com todas as partes interessadas para garantir inclusão e diversidade, acompanharemos e monitorizaremos a implementação do Marco de Ação de Marraquexe e responsabilizaremos os governos pelos compromissos que assumiram em Marraquexe.
Bibliografia
Anheier, Helmut K., et al. “Civil society in times of change: shrinking, changing and expanding spaces and the need for new regulatory approaches.” Economics, vol. 13, no. 2019-8, 2019, pp. 1-27. DeGruyter, https://www.degruyter.com/document/doi/10.5018/economics-ejournal.ja.2019-8/html. Accessed 1 July 2022.
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